21 de fevereiro de 2024
Em janeiro de 2019, publicamos um artigo sobre o papel do advogado na desjudicialização do país, destacando que a advocacia somente será realmente indispensável à administração da Justiça quando todos estiverem contribuindo de forma efetiva e genuína para uma sociedade menos litigiosa.
Agora chegou a vez de falarmos do Superior Tribunal de Justiça.
No próximo dia 21 de fevereiro (cinco anos após a provocação acima), a Corte Especial julgará o Tema Repetitivo 1.198, que decidirá se o juiz pode exigir que a parte autora apresente novos documentos capazes de lastrear minimamente os pedidos, caso perceba indícios de que a lide é fraudulenta.
Os efeitos do julgamento são muito relevantes. Dependendo do resultado, o tribunal (i) terá uma contribuição fundamental para retirar do Judiciário milhões de litígios desnecessários ou (ii) abrirá uma brecha enorme para que a litigância predatória se fortaleça ainda mais.
A questão sob julgamento é bastante óbvia: a possibilidade do juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.
Não obstante a obviedade, já que o poder de cautela está expressamente previsto no Código de Processo Civil, o tema infelizmente é controverso e polêmico.
Em audiência pública realizada no dia 4 de outubro de 2023, o STJ recebeu representantes de centros de inteligência dos vários tribunais, de associações de advogados e institutos de defesa do consumidor, de pesquisadores independentes, da Ordem dos Advogados do Brasil, de entidades privadas interessadas, do Conselho Nacional de Justiça e da Advocacia Geral da União.
Além da quantidade de entidades representadas na referida audiência pública (fato que já demonstra a relevância do tema), também impressionou o fato de haver uma insistente retórica de alguns representantes em relação a dois pontos: (i) que o termo “litigância predatória” é inadequado e não pode ser confundido com advocacia de massa e (ii) que existe na verdade uma “perseguição” por parte dos juízes e dos centros de inteligência dos tribunais contra a “advocacia consumerista”.
Os dois pontos acima foram abordados na audiência pública1 de forma mais contundente por advogados, representantes de institutos de defesa do consumidor; por representantes de seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil e pelo próprio Conselho Federal da OAB.
As manifestações geraram uma reação coordenada dos centros de inteligência de 13 tribunais, por meio da “Rede de Inteligência do Poder Judiciário”. A Rede produziu uma nota técnica robusta e muito bem fundamentada, rebatendo os dois pontos acima e apresentando fortes argumentos favoráveis à manutenção do poder de cautela do juiz como instrumento de proteção contra a litigância predatória.
A Nota Técnica é muito embasada em indicadores e fornece informações valiosas para o STJ no julgamento do Tema 1.198, especialmente (i) que a litigância predatória não ocorre somente nas lides consumeristas, ela existe também em litígios previdenciários e trabalhistas, por exemplo; (ii) que os processos desnecessários advindos de litigância artificial já representam 30% das ações em tramitação nos tribunais; e (iii) que o problema consome dos cofres públicos mais de 25 bilhões por ano.
Já seriam informações suficientes para que o poder de cautela dos magistrados fosse confirmado pela Corte Especial do STJ no próximo dia 21 de fevereiro. Todavia, podemos contribuir com mais alguns dados sobre o tema, especialmente para demonstrar que o assunto é muito grave, merece ser avaliado com seriedade e, definitivamente, não reflete uma “perseguição” contra a advocacia.
Inicialmente, é importante lembrar que o processo que deu origem ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e, consequentemente, ao recurso especial afetado recentemente pelo STJ, é patrocinado por um dos advogados presos na Operação Arnaque, deflagrada em Campo Grande.
De acordo com informações obtidas por meio de uma legaltech2 especializada em extração e correlação de dados processuais, o advogado em questão montou uma verdadeira “indústria de judicialização”. A estratégia de atuação dele é muito característica: são processos focados em instituições financeiras (94% dos casos), muitas vezes sem qualquer prova, distribuídos em mais de 20 estados da federação e com um alto volume de judicialização (ele chegou a distribuir 281 processos novos em um único dia).
Outra característica marcante é a distribuição de vários processos em nome de um mesmo consumidor (média de 17 por pessoa), chegando a ter 53 ações patrocinadas para um único autor contra 6 bancos diferentes:
Há indícios de que existem redes de advogados que “usam” consumidores para ajuizarem ações em massa contra instituições financeiras.
Uma única consumidora consta na plataforma com 111 processos ajuizados contra diversos bancos (com cinco advogados diferentes). De 18 processos patrocinados pelo advogado do caso que chegou ao STJ, 15 foram distribuídos no mesmo dia e somam a quantia de aproximadamente R$500 mil reais:
Os dados correlacionados pela inteligência da plataforma demonstram que, infelizmente, não se trata deu um caso isolado. Existem centenas de outras “indústrias de judicialização” pelo Brasil, com um grau de sofisticação elevado e, muitas vezes, focadas em um nicho específico de mercado (instituições financeiras, empresas aéreas, telefonia, construção civil, fornecimento de energia elétrica etc.).
No setor de aviação civil os “atores” mudam e o modus operandi também: influenciadores digitais “ensinam” passageiros que os problemas com viagens podem se transformar em novas passagens, por meio da judicialização de eventos como atraso, cancelamento de voos, extravio de bagagens etc. O consumidor, que aparentemente gosta da ideia de não pagar pela próxima viagem de férias, é facilmente “fisgado” por advogados que ajuízam as ações, muitas vezes, “fracionando” o suposto problema em mais de um processo.
Com um cenário de incentivos, ferramentas de captação de “clientes” e de compra do direito de ações (plataformas “abutres”), a judicialização do setor aéreo se tornou um problema grave e totalmente incoerente com os indicadores de crescimento setoriais. Como demonstrado no gráfico abaixo, somente em 2023 o volume de processos novos distribuídos contra as principais companhias aéreas do Brasil cresceu 103%, enquanto o número de voos teve uma evolução de apenas 8% (em relação a 20224).
Já no setor da construção civil, o que encontramos é uma enxurrada de ações em que se alega (sem provas) a existência genérica de supostos “vícios construtivos” em unidades vinculadas ao Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e, normalmente, incluem somente a Caixa Econômica Federal no polo passivo, pedindo indenização e não a realização de reparos.
Trata-se de um “nicho” de atuação vislumbrado por poucos (e específicos) advogados. Dados apresentados pela CBIC na audiência pública demonstram que, das 126 mil ações ajuizadas sobre o tema contra a CEF, mais da metade está concentrada em apenas 5 “profissionais”.
De acordo com dados obtidos por meio da plataforma, um advogado (registrado originariamente na OAB de Palhoça/SC) ajuizou sozinho, em pouco mais de cinco anos, mais de 12.300 ações envolvendo supostos vícios construtivos contra o FAR em todos os Tribunais Regionais Federais do Brasil. Trata de um “fenômeno” da advocacia ou alguém que encontrou uma brecha para criar a sua própria “indústria de judicialização”.
No caso da construção civil, de acordo com dados apresentados pela CBIC, os prejuízos decorrentes das ações fraudulentas contra o FAR podem chegar a R$13,7 bilhões (mais do que o orçamento previsto para o programa Minha Casa, Minha Vida em 2024).
Portanto, além da recente Nota Técnica produzida pela “Rede de Inteligência do Poder Judiciário”, as informações apresentadas acima reforçam que o Tema 1.198 requer uma discussão séria, isenta e criteriosa, se possível com a utilização de dados e indicadores que demonstrem ao STJ muito mais do que simplesmente retórica, corporativismo e a “mania de perseguição”.
O Superior Tribunal de Justiça, conhecido como o “Tribunal da Cidadania”, tem nas mãos a oportunidade única de ser protagonista na discussão sobre o problema (grave e real) da litigância predatória para o Judiciário e, consequentemente, ajudar a desjudicializar o Brasil.
1 Link para a transmissão da audiência pública do Tema 1198
2 Dados públicos obtidos e enriquecidos pelo Spotlaw.
3 Os dados completos dos consumidores foram omitidos.
4 Dados disponibilizados pela ANAC.
Artigo de Guilherme Freitas, diretor Jurídico da MRV, publicado no Portal Jota
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