19 de abril de 2023
Ainda dá tempo de salvar o planeta? A resposta da ciência é: dá sim, mas é preciso correr. O relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de março, confirmou a tendência do aquecimento global a 1,1º C acima dos níveis pré-industriais. Torna-se mais urgente adotar ações ambiciosas e imediatas, a fim de garantir um futuro sustentável e habitável para todos. Uma forma inovadora de desenhar esse roteiro, proposta recentemente, inclui "tipping points" positivos.
A lógica é a seguinte: neste momento, os esforços de mitigação para conter as emissões de gases de efeito estufa ainda são insuficientes e nos colocam no rumo assustador de pontos de não retorno, pontos de inflexão ou, em inglês, “tipping points”. O termo se refere a pontos críticos de “virada” do sistema terrestre, desencadeados pela crise climática. Cada um desses pontos, se atingido, indica mudanças irreversíveis e que se retroalimentam, levando a um efeito dominó de consequências negativas severas em todo o mundo.
É o caso do derretimento do gelo do Ártico, da Groenlândia, da Antártida Ocidental e de duas áreas da Antártida Oriental; do colapso da corrente marinha denominada Circulação Meridional de Revolvimento do Atlântico (ou Amoc, na sigla em inglês); da destruição de 25% da Amazônia; e da perda do permafrost (a camada de solo congelado no norte de Ásia, Europa e América do Norte). No caso do Brasil, uma pesquisa da Science de setembro de 2022 mostrou que o risco na Amazônia já é iminente e essa perda traria implicações “profundas” para o clima e a biodiversidade global. Em um estudo de 2021 do Instituto Potsdam de Pesquisa de Impactos Climáticos, que mapeou ao menos 16 tipping points, cientistas simularam mais de três milhões de cenários possíveis em diferentes temperaturas e constataram que os “pontos de não retorno” em diferentes partes do planeta também podem desestabilizar uns aos outros.
Mas e se além desses tipping points negativos, existissem tippings positivos, que indicassem uma nova fase -- acelerada e retroalimentada -- dos processos sustentáveis e regenerativos? O conceito surgiu em um relatório divulgado no início deste ano pelo Bezos Earth Fund, SystemIQ e a Universidade de Exeter.
Batizado de “The Breakthrough Effect” (“o efeito revelação”), o documento traz o subtítulo “Como desencadear uma cascata de pontos de não retorno para acelerar a transição líquida zero”, que seriam pontos de inflexão positivos, nos quais a tecnologia e novos processos produtivos possibilitam que setores da economia se descarbonizem e não voltem a ser como antes.
Para isso, os autores sugerem 10 “pontos de virada” que surgem quando “um conjunto de condições é atingido, permitindo que novas tecnologias ou práticas superem os concorrentes”, oferecendo “uma oportunidade de aumentar rapidamente a implantação de soluções de emissão zero e reduzir drasticamente as emissões globais”.
“Identificar as principais oportunidades e fazer mudanças relativamente pequenas e direcionadas pode produzir grandes retornos em termos de descarbonização. Os setores de alta emissão da economia não existem isoladamente - eles são altamente interconectados - e as soluções de emissão zero podem influenciar as transições em vários setores simultaneamente”, destacam os autores.
Cada ponto de virada foi avaliado em função de seu custo, atratividade (que inclui vantagens como confiabilidade e conveniência, para além do custo) e acessibilidade (a difusão em grande escala, e não apenas para alguns atores econômicos privilegiados). Assim como nos tipping points negativos, os positivos funcionam em efeito cascata, que pode difundir a mudança rapidamente entre os setores e torná-la menos reversível, concluiu o relatório.
Confira os 10 tipping points positivos:
1. Energia: solar, eólica e armazenamento
O “ponto de virada” para que as energias renováveis se tornem a regra é o custo da geração solar e eólica se tornar inferior ao da geração por carvão e gás natural (isso já tornaria as renováveis mais vantajosas também que as outras fontes fósseis, como petróleo). O cálculo precisa incluir o custo nivelado de energia (LCOE), ou seja, o custo em relação à produção ao longo de toda a vida útil do ativo em análise (como uma usina). O relatório lembra que essa mudança já atingiu um ponto de virada anterior, em 2021, quando gerar energia adicional, com projetos novos, tornou-se mais barato a partir das fontes solar e eólica na grande maioria dos países. Capacidade de armazenamento em baterias é um fator fundamental e em progresso. O limitador crítico, no momento, é a acessibilidade: as redes para transmitir e distribuir energia limpa não estão sendo construídas na velocidade necessária. Esse é o principal tipping point positivo, com maior efeito potencial para conter a crise climática.
2. Veículos elétricos
No setor de transporte rodoviário, propõe-se uma mudança rápida para veículos elétricos em busca de uma plena descarbonização. O ponto de virada seria quando esses veículos movidos à bateria (BEV) atingirem a paridade de preço de venda com os veículos a combustão, grandes emissores de gases estufa. De acordo com o relatório, à medida que mais BEVs são implantados, há uma redução de custo de 19% a cada vez que se dobra a produção. Essa mudança, juntamente com a 5, nos fertilizantes, e a 6, no aço, são consideradas as mais bem encaminhadas.
3. Caminhões elétricos
Também no setor de transporte rodoviário, a descarbonização ocorreria com o desenvolvimento e uso de novos veículos e sistemas de transmissão de caminhões elétricos a bateria (BETs) e caminhões elétricos a hidrogênio. Um ponto de virada possível seria quando os BETs atingirem a vantagem do custo total de propriedade (TCO) em relação aos caminhões movidos à diesel.
4. Aquecimento de edifícios: bombas de calor
O relatório propõe que as bombas de calor sejam uma alavanca na descarbonização de edifícios residenciais, já que podem ser alimentadas por eletricidade renovável e requerem entre um quarto e um terço da energia para fornecer a mesma quantidade de calor do que as caldeiras a gás. O ponto de inflexão para sua implantação virá com alternativas para superar as desvantagens práticas e de tempo da sua instalação. O relatório considera essa uma das transições mais difíceis.
5. Adubo: amônia verde
O uso de fertilizantes derivados do petróleo na agricultura responde por cerca de 1,4% das emissões anuais de dióxido de carbono. Segundo o relatório, otimizar esse uso pode reduzir as emissões em 70% por meio de medidas, como: melhor rotação de culturas (adição de leguminosas), combinação de fertilizantes com as necessidades das culturas e mudanças na dieta.
Para a descarbonização de fertilizantes, a produção da chamada amônia verde (produzida a partir do hidrogênio verde) e a amônia azul (cujo processo de produção retira o hidrogênio do gás natural e sequestra o carbono no processo) são fundamentais e precisam se tornar viáveis economicamente e tecnologicamente dentro de uma década - o que poderia ampliar as cadeias de abastecimento e reduzir o custo para outros setores.
6. Aço: hidrogênio verde
A produção de aço a partir do hidrogênio verde vêm sendo estudada e viabilizada. O ponto de virada para descarbonizar a siderurgia será possível com o desenvolvimento da primeira onda de usinas de aço verde (cerca de 25 plantas) para iniciar a adoção em larga escala. Dessas, 11 estão em diferentes fases de planejamento e deverão estar em funcionamento em 2030.
7. Transporte de carga marítimo: amônia verde
O uso de amônia verde no transporte marítimo está em estágio de desenvolvimento, com cerca de 80 projetos de tecnologia piloto em andamento no mundo. Para a navegação de curta distância, a descarbonização ocorre com motores elétricos ou células de combustível de hidrogênio. Já a de longa distância indica que serão necessários combustíveis líquidos alternativos, como a amônia verde e o metanol. O ponto de virada possível será após o desenvolvimento da primeira onda de “corredores de transporte ecológico”, com 5% do consumo global de combustível.
8. Aviação: combustível sintético
A descarbonização do setor da aviação será impulsionada por três soluções principais: eficiência energética; aviões elétricos movidos a hidrogênio e bateria; e combustíveis de aviação sustentáveis. A expectativa é que aeronaves a hidrogênio e a bateria respondam por 35% da demanda final de energia até 2050 e os 65% restantes seja suprido com combustíveis de aviação sustentáveis. Nesse segundo grupo, um quarto do abastecimento deve vir de biocombustíveis, com produção limitada, e três quartos de combustível sintético, também chamado PtL (energia-para-líquidos), que permanece em fase de demonstração, com o ponto de virada sendo a entrada no mercado em larga escala até 2025.
9. Alimentos e agricultura: proteínas alternativas
Três proteínas alternativas têm maior potencial no setor de alimentos e agricultura: à base de plantas (PB), de microorganismos e de células animais. Um ponto de virada pode acontecer quando as alternativas à base de plantas atingirem o mesmo custo da proteína animal e tiverem a mesma atratividade para o consumidor. A transição sofre influência de vários fatores não econômicos, particularmente normas sociais e culturais. Depois da energia limpa, esse é o segundo ponto de virada com maior impacto potencial contra a crise climática.
10. Evitar mudanças no uso do solo: valorizando soluções baseadas na natureza
As soluções baseadas na natureza (SBN) precisam ser usadas para proteger o solo. O ponto de virada pode ocorrer quando os proprietários de terras virem maior benefício financeiro em preservar ou criar cobertura vegetal, como florestas, pântanos e turfeiras, para prestar serviços ecossistêmicos, em vez de dar outro uso à área. O comércio de créditos de carbono é um mecanismo que se insere nesse ponto de virada. O relatório considera essa como a mais desafiadora mudança no momento. Depois da adoção de energia limpa e de proteínas alternativas (pontos 1 e 9), essa seria a transformação com maior efeito contra a crise climática.
Fonte: Um Só Planeta
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