22 de março de 2023
Os elevados saques da poupança nos últimos dois anos acenderam um sinal amarelo para o crédito imobiliário, que continua com demanda forte, apesar da alta das taxas de juros. Um aumento da participação de recursos do mercado, porém, deve ajudar o setor a se manter em expansão.
A fatia do mercado de capitais no funding do setor subiu de 26,6%, em 2021, para 34% no fim do ano passado. Enquanto isso, a da caderneta recuou de 46% para 40% e a do FGTS oscilou pouco, ficando em 26,2%.
Esse movimento é importante porque, diferentemente do que se viu na última crise, entre 2016 e 2017, quando os financiamentos habitacionais chegaram a recuar 60% frente ao pico de 2014, desta vez o setor se mostra mais resiliente. Segundo a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), o mercado tende a manter um ritmo de concessões neste ano mais perto do topo histórico que do vale.
“Os números do início do ano sinalizam que caminhamos para fechar o terceiro melhor ano da história”, diz o presidente da entidade, José Ramos Rocha Neto.
Os dados da Abecip indicam que janeiro foi o terceiro melhor primeiro mês da série histórica em concessões de crédito imobiliário com recursos da poupança, o SBPE (sistema brasileiro de poupança e empréstimo). A produção alcançou R$ 11,9 bilhões. E fevereiro, diz a associação, seguiu na mesma direção. A Abecip vê possibilidade de o ano fechar com concessões de R$ 156 bilhões oriundas de recursos funding da poupança.
O resultado tende a se consolidar mesmo diante de saques líquidos da caderneta que somam R$ 183,7 bilhões entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2023, segundo dados do Banco Central. Essa sangria foi atenuada em parte pela captação líquida de R$ 166,31 bilhões ocorrida em 2020 na comparação com 2019, quando a pandemia reduziu o consumo e ajudou na formação de poupança.
O volume de resgates da poupança afeta diretamente o crédito, porque o popular produto de investimento é a principal fonte de recursos para a linha de aquisição residencial e para o financiamento de construtoras dentro do Sistema Financeiro de Habitação (SFH). A legislação determina às instituições direcionamento de 65% desse saldo ao crédito imobiliário.
Entre 2015 e 2016, a caderneta de poupança registrou saídas líquidas de R$ 94,2 bilhões. No período, houve forte queda nas concessões devido à redução dos recursos no SBPE. De 2014 para 2015, a produção de novos empréstimos imobiliários caiu 33% para R$ 75,6 bilhões. Em 2016, as instituições puxaram ainda mais o freio e só financiaram R$ 46,6 bilhões, ou seja, 2,4 vezes menos que em 2014 e 38,3% abaixo de 2015.
Diante do precedente histórico, o Comitê de Estabilidade Financeira do BC (Comef) expressou recentemente preocupação com os efeitos da continuidade dos saques na caderneta para o financiamento ao setor. Segundo a ata da reunião ocorrida entre 1 e 2 de março, “o Comef segue atento à dinâmica de resgates da poupança e seus efeitos nas concessões do crédito imobiliário”. De fato, as operações de empréstimo para aquisição residencial no SBPE recuaram 15,2% em janeiro deste ano frente a dezembro de 2022. Na comparação anual, houve redução de 18,4%. Porém, nesse cenário também tem grande peso o fato de as taxas de juros terem subido no país.
Participação da poupança na estrutura de ‘funding’ do crédito imobiliário caiu de 46% para 40% em um ano
Com a falta de perspectiva para o início da queda da Selic, há sinais de que um cenário de maior restrição começa a se materializar. Fontes do mercado afirmam que a Caixa, que respondeu por 49% das concessões em janeiro, reduziu pela metade o volume de concessões desde o início do mês. As demais instituições também já se tornaram mais seletivas na aprovação.
Os saques contínuos da poupança têm elevado a preocupação do setor. Isso porque, mesmo com o crescimento da captação por meio do mercado de capitais, se as retiradas líquidas continuarem por muito tempo, o crédito privado não vai conseguir suprir a queda do funding direcionado.
Uma eventual atenuante passaria pelo aumento do próprio direcionamento, segundo o presidente da Associação Brasileira das Incorporadoras (Abrainc), Luiz França. A entidade enviou na semana passada uma proposta ao BC para elevação do volume de recursos da poupança destinados ao crédito imobiliário. “Quando tivemos juros de 18% ao ano [entre 2000 e 2005], a caderneta possibilitou às pessoas adquirir imóvel com taxas perto de um dígito”, afirma.
França defende que, diante da importância do instrumento para o setor, o BC aumente o percentual de recursos direcionados em um ambiente no qual a taxa Selic pode permanecer elevada até 2024.
“O custo do mercado inviabiliza operação de aquisição de imóvel e o funding da poupança está chegando no limite, então, enquanto o país não tiver uma taxa de juros de um dígito, para que o mercado não corra risco de travar, é preciso que o BC reduza o compulsório da poupança de 35% para 30% [direcionando 70% do saldo da caderneta].”
Nas contas da Abrainc, um aumento de cinco pontos percentuais na disponibilização de recursos da poupança levaria a uma injeção de R$ 38 bilhões no setor. A proposta da associação é que o recurso extra seja direcionado só para a compra de imóveis novos. “Seria como uma liberação do compulsório do bem, sem impactar a luta contra a inflação”, diz.
Rocha, da Abecip, ainda enxerga resiliência da caderneta neste ano. Ele chama a atenção para o fato de que, em termos absolutos, o volume de recursos da caderneta na estrutura de funding caiu 3% entre 2021 e 2022. O saldo da diminuiu de R$ 790 bilhões para R$ 764 bilhões no fim do ano passado. Em fevereiro de 2023, recuou para R$ 739,14 bilhões.
Apesar disso, Rocha observa o resultado permanece em patamar acima da média histórica. Essa maior resistência aos ciclos da poupança vem a reboque, em grande medida, da evolução do mercado de capitais. O crescimento dos volumes financeiros e da diversificação de fontes de financiamento têm irrigado o mercado imobiliário com novos recursos.
“Os bancos estão emitindo títulos no mercado de capitais, como LCI [Letra de Crédito Imobiliário] e LIG [Letra Imobiliária Garantida], que são fontes de recursos fora do SFH”, pondera, Vitor Senra, sócio-fundador e executivo-chefe de investimentos da gestora especializada no mercado imobiliário Brio. “Parte importante dos recursos dos bancos para o crédito imobiliário é o mercado de capitais que está resolvendo, por isso, o custo já não é mais só o da poupança de 6,17% mais a TR [taxa referencial].”
A LIG foi o maior destaque no ano passado, com salto de R$ 42 bilhões em volume financeiro, uma alta de 87%. O saldo saiu de R$ 48 bilhões há dois anos para R$ 90 bilhões no fim de 2022. Outro instrumento bancário, a LCI apresentou em um ano um crescimento de 70% para um estoque de R$ 239 bilhões.
Já o Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI) teve uma expansão de 39%, de R$ 106 bilhões para R$ 148 bilhões entre 2021 e 2022. Os Fundos Imobiliários (FII) apresentaram crescimento mais modesto, de 9%, para um saldo de R$ 174 bilhões.
A poupança sozinha chegou a representar mais de 80% do funding do crédito imobiliário até 2008 e mais de 70% até 2010. A fatia da caderneta no bolo tem caído, em termos percentuais, a cada ano. Há uma década essa participação ainda atingia 65%.
O crescimento do funding total do setor no ano passado veio pelos instrumentos de mercado. Enquanto o estoque da caderneta recuou R$ 26 bilhões em um ano, o saldo dos produtos de renda fixa aumentou R$ 186 bilhões, segundo dados da Abecip.
“De cinco anos para cá, quando as taxas caíram, com o mundo desenvolvido em juro zero e inflação baixa, o mercado de capitais no Brasil andou muito”, afirma Senra, da Brio. “Os vários instrumentos de crédito privado começaram a ter relevância maior a todos os segmentos imobiliários”, acrescenta.
À medida que se desenvolve, o mercado de capitais local tem ganhado terreno como fonte de recursos para as empresas do setor. Segundo França, da Abrainc, “o acesso ao mercado de capitais tem crescido dentro do setor de incorporação”. Conforme o dirigente, “as empresas de menor porte, por exemplo, têm conseguido acesso ao mercado de dívida para se financiar”.
Os recursos que chegam pela captação no mercado de crédito privado têm ajudado a indústria a sustentar o crescimento na estruturação de novos empreendimentos. “De fato, colaborou para aumentar lançamentos e a compra de terrenos”, pondera o presidente do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP), Ely Wertheim. “As fontes de financiamento do mercado de capitais têm crescido e dado sua contribuição [ao setor]”, diz.
“O mercado não sobrevive hoje sem instrumentos incentivados [isentos de imposto de renda para pessoa física]”, afirma o CEO da Hedge Investments, Andre Freitas. “O crédito privado tem hoje importância fundamental no financiamento da construção civil.”
De acordo com o sócio e chefe da área de crédito estruturado da CY Capital, Danny Niskier Grampel, uma série de fatores ajudou o mercado de capitais a mudar de patamar como fonte de financiamento às empresas. “Nos últimos anos, com as plataformas de investimento, a disseminação da educação financeira pelas redes sociais, a busca por diversificação quando o juro estava em um dígito e o aumento da cobertura do Fundo Garantidor de Crédito [FGC] a partir de 2013, houve um processo de ‘varejização’ do mercado de investimentos.”
Para Grampel, “essa varejização ajudou tanto os investidores acessar o mercado, quanto as empresas captarem por meio do crédito privado”. Segundo ele, as incorporadoras começam a acessar esse funding e as empresas médias também passaram a buscar essas fontes de financiamento. “São duas pontas crescentes no longo prazo, a de demanda de investimento e da busca de companhias por [novo] funding.”
Mas, se, por um lado, o crescimento do mercado de capitais tem ajudado no financiamento operacional das empresas, de outro, a captação por meio de instrumentos incentivados ainda não funciona de maneira eficiente como funding para as linhas de aquisição residencial. Para Senra, da Brio, “o mercado de capitais está mais preparado para financiar a produção porque o ‘duration’ [prazo] é curto, mas ainda não está pronto para dar financiamento de 35 anos [prazo máximo nas modalidades de empréstimo para pessoa física]”.
Um dos principais entraves é a incerteza sobre uma estabilização macroeconômica no longo prazo. A taxa Selic, que, na prática, define o custo do dinheiro no mercado, está em 13,75% ao ano. “No momento atual, por exemplo, temos uma grande incerteza [macroeconômica], o que dificulta as captações em relação ao juro alto”, afirma Freitas, da Hedge.
“A capacidade de absorção do mercado de capitais ainda é limitada para fazer frente à necessidade de crédito do setor, seja em volume ou em custo do financiamento”, analisa o sócio e gestor de crédito imobiliário da RBR Asset, Guilherme Antunes. “A caderneta leva financiamento à pessoa física com taxa de juros baixa quando comparada com aquelas de mercado e com os juros que já que tivemos no Brasil”, afirma França, da Abrainc.
Para mudar o cenário de dependência da poupança, “o país precisa ter estabilidade política, alinhamento de expectativas nas políticas fiscal e monetária, segurança jurídica e melhor funcionamento das instituições”, afirma Antunes, da RBR. O gestor aponta ainda iniciativas para o ambiente de negócios. “No contexto micro, se mostram necessárias melhorias tanto regulatórias quanto na padronização e acesso a informações, além de aumento da oferta de canais de distribuição e redução de custos.”
Sem estabilidade macro e sem a possibilidade de o juro se manter em um dígito no longo prazo, a poupança se mantém como maior fonte de recursos e funding essencial ao setor imobiliário. Para efeito de comparação, o sócio da RBR observa que, no ano passado, os recursos direcionados ao crédito imobiliário foram mais de quatro vezes o volume de emissões de CRI.
Fonte: Valor Econômico
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